O dia que não esquecerei
“Eu sofro de artrite e meus remédios acabaram; minha mãe fez 100 anos na semana passada e não temos nada para comer em casa”.


Naquela noite acontecia um evento da prefeitura na cidade, com trio elétrico em alto volume; o locutor fazia a apresentação com muito profissionalismo e domínio. E eu ali, deitado, com ouvidos atentos ao que ocorria do lado de fora. Eu não sabia, mas aquele era exatamente o locutor a quem eu substituiria na rádio, no horário da manhã, pois ele já estava de saída da emissora. Naquela rádio, Deus me deu várias oportunidades para tornar-me tornar útil às pessoas que procuravam ajuda. Alguns casos me marcaram bastante e, pude com isso, ter a confirmação que o papel da comunicação no rádio vai muito além de um trabalho profissional artístico, e que Deus havia me chamado para essa missão.
Ela já tinha seus 74 anos de idade. Andando com dificuldade, apoiada por uma bengala de madeira, chega à recepção da rádio Novo Tempo de Governador Valadares-MG e diz à recepcionista: “moça eu preciso de ajuda, não tenho nada em casa para comer”.
Era meu último dia na rádio, outubro de 1998. Estava de malas prontas e passagem comprada esperando a hora do embarque para o Rio de Janeiro naquela noite. Quando fui chamado à recepção para atender aquela senhora, meu coração ficou apertado com sua declaração: - eu sofro de artrite e meus remédios acabaram; minha mãe fez 100 anos na semana passada e não temos nada para comer em casa. Ela é cega, e vive em cima da cama- disse com voz embargada. Naquele momento perguntei sobre os filhos dela e a resposta me doeu ainda mais: -estão todos em Belo Horizonte e não mandam notícias há muito tempo; não temos condições de procurá-los - explicou.
Depois daquela breve conversa, não demorou muito para eu voltar ao ar, e fazer um apelo por dona Bárbara. O quadro “alguém precisa de você” entrou logo depois da propaganda eleitoral para prefeito extraordinariamente, pois eu já havia saído do ar. Nesse dia, o programa não recebeu nenhuma ligação para ajudar aquela senhora. Fiquei muito preocupado com a situação dela. Desde sua estréia, o quadro do programa nunca havia deixado ninguém sem ter seus problemas solucionados, desde pedidos de cesta básica, remédios, empregos a enxoval de bebê.
Depois de feito o apelo no ar, voltei à recepção para falar com ela novamente . - A senhora pode ir para casa. Deixe seu endereço comigo que vou levar seus alimentos mais tarde - prometi. Ela agradeceu, com lágrimas nos olhos, e, levantando-se da cadeira, apoiada em sua bengala, foi embora.
Depois de feito o apelo no ar, voltei à recepção para falar com ela novamente . - A senhora pode ir para casa. Deixe seu endereço comigo que vou levar seus alimentos mais tarde - prometi. Ela agradeceu, com lágrimas nos olhos, e, levantando-se da cadeira, apoiada em sua bengala, foi embora.
Não pude aceitar o fato de aquela senhora continuar sem alimento
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Eu, apresentando o programa Manhã Total. 1997 |
Com a ajuda de um comerciante que tinha um restaurante em frente à emissora, passamos nas casas dos ouvintes e no supermercado; enchemos metade da Kombi e rumamos para o bairro Mãe de Deus, uma área carente e sem muita infra-estrutura; o esgoto corria a céu aberto e crianças se divertiam descalças e sujas entre porcos, cachorros e galinhas em plena rua. Quando dobramos a esquina do endereço que dona Bárbara nos informou, o carro teve dificuldade em subir aquela rua esburacada, com covas abertas provavelmente pelas enxurradas das chuvas. Ao chegar no final da rua, num local plano, avistei dona Bárbara. Estava ela sentada com uma vizinha, com os braços apoiados em sua bengala, com expressão desolada como se aquele dia anoitecesse sem ter a resposta que precisava. Ao pararmos em frente ao portão feito de ripas velhas, entre cerca de arame farpado, a reação daquela senhora não foi outra senão reunir forças nas pernas já debilitadas pela artrite e sair gritando no quintal, adentrando a porta da sala: -Mãe, o moço da rádio veio nos ajudar.
Ao entrarmos no quintal com as doações, os vizinhos vieram auxiliar. Dona Bárbara já voltava saindo da porta da sala ao nosso encontro e me levou ao quarto de sua mãe, magra, cabelos branquinhos e, sentando-se com dificuldade, encostando-se na cabeceira da cama, naquele quarto em penumbra, úmido, janelas fechadas, onde uma lâmpada fraca iluminava o ambiente. Ao lado da cama um criado mudo, um copo dágua e uma Bíblia aberta com folhas amarelecidas, como se agarrasse à fé. Seus braços se estendiam como quem oferece um abraço. Sentei ao lado dela, e a abracei forte, demorado. Minha mão em suas costas, sentiam sua magreza e as mãos dela em meu ombro deixavam clara a sua debilidade. Com voz trêmula e fraca ela disse: -meu filho, que Deus lhe dê muita paz e muita saúde, eu não vou me esquecer desse dia. Naquele momento não contive as lágrimas. O meu último dia naquela cidade me marcará para o resto da vida e jamais esquecerei.
Uma Homenagem a todos Radialista
Fonte : blog Elias Teixeira
Category: Meditação